Chapter 1:

Destinos alterados.

Entre Luzes e Máscaras Quebradas


Os enormes portões da Mansão Ravencout se abriram, revelando um salão tomado por brilho e imponência. Lustres dourados pendiam do teto abobadado, refletindo nas superfícies de mármore e nos detalhes finamente entalhados nas paredes.
O som dos passos ecoava em meio às paredes adornadas de mármore branco e pilares decorados com fios de prata. Um a um, nobres adentravam o grande salão cerimonial da Casa Ravencout, guiados por mordomos e servos que anunciavam seus títulos com formalidade e precisão.
— “Sua Graça, Duque Herrington, Patriarca da Casa Herrington, e sua consorte.”— “Visconde Larel, da Província Sul.”— “Baronesa Elise von Aster...”
As vozes se sucediam, preenchendo o ambiente com uma aura de prestígio e tradição. Nobres se cumprimentavam com acenos discretos, alguns trocando sorrisos calculados, outros apenas mantendo a máscara de cordialidade.
Embora houvesse um número considerável de convidados, o salão não estava abarrotado. Apenas aqueles de famílias diretamente ligadas à Casa Ravencout, ou de influência considerável dentro do Império, foram convocados para testemunhar aquela cerimônia — um evento importante, mas ainda assim privado, reservado para olhos selecionados.
Logo três figuras seguiram até o centro do grande salão, ambos estavam com as vestes cerimôniais e estava claro a todos que eram os descendentes da família Ravencout.
Lysielle caminhava com passos firmes, ladeada pelos seus irmãos. Mantinha o queixo erguido e a postura impecável, como a ocasião exigia, mas, no fundo, carregava uma empolgação difícil de disfarçar. Afinal, aquele dia seria decisivo.
No meio dos cumprimentos, uma figura chamou sua atenção.Um homem de aparência distinta, já de idade, com longos cabelos prateados bem alinhados, vestindo um sobretudo escuro de corte refinado, adornado por discretos traços dourados.Seus olhos azuis transmitiam uma presença serena, imponente, mas, ao mesmo tempo, acolhedora.
Leonhardt von Ainsworth.Ele não era apenas um nome de respeito entre os altos círculos. Era também aquele que, durante anos, havia sido seu mentor — o responsável por moldar seu domínio sobre magia, etiqueta, estratégia e disciplina.
Sem quebrar a formalidade do ambiente, Leonhardt fez um breve e elegante gesto, levando dois dedos até a lapela do casaco e, em seguida, tocando-os de leve no queixo — um sinal sutil, quase imperceptível, mas que carregava um significado muito claro entre os dois.
Lysielle conteve um sorriso, endireitou-se um pouco mais e, naquele instante, sua confiança se solidificou.
O som dos vitrais tremendo levemente sob o vento contrastava com as conversas abafadas que surgiam aqui e ali:
— “Então... finalmente a geração dos herdeiros Ravencout se apresenta...”— “Ouvi dizer que a primogênita... é simplesmente monstruosa em talento...”— “Monstruosa não... divina. Dizem que ela nasceu sob três presságios celestiais...”
No centro do salão, três círculos mágicos, meticulosamente desenhados com linhas prateadas e gemas azuis, aguardavam os herdeiros. Atrás deles, o altar da linhagem ancestral da família pulsava com uma luz tênue, como se já pressentisse o que estava por vir.
Então, do topo da escadaria, acompanhado por um mordomo de aparência severa, surgiu a figura que imediatamente fez todas as conversas cessarem.
Gilbert Ravencout.
O Patriarca da família, trajando um manto negro com detalhes em prata e azul, desceu os degraus lentamente. Seu olhar frio percorria cada rosto no salão, impondo respeito, mas também uma tensão palpável.
O mordomo então assumiu seu lugar à frente, e com um tom cerimonial, anunciou:
— “Sejam bem-vindos à cerimônia de iniciação dos herdeiros da Casa Ravencout.” — sua voz ecoou forte, precisa. — “Neste dia, testemunharemos os primogênitos desta geração firmarem seu primeiro pacto espiritual. Um momento que selará seu caminho como verdadeiros descendentes de sangue puro.”
Fez uma breve pausa, antes de prosseguir:
— “Este é um evento que reflete não apenas nossa tradição, mas também nossa responsabilidade diante do mundo. Pois... cada geração carrega consigo o fardo de superar a anterior.”
Quando se afastou, Gilbert avançou, parando exatamente diante dos três círculos mágicos. Seu olhar então se voltou para os nobres presentes.
— “Que fique claro...” — sua voz parecia aço batendo contra pedra — “...os olhos do mundo estão sobre nós. Meus filhos... Caine, Vellatrice...” — seus olhos então se apertaram ligeiramente — “...e você, Lysielle.”
O nome da filha mais velha pareceu carregar mais peso do que qualquer outro som no salão.
— “De vocês três, espero competência, força... e excelência. Mas você, Lysielle...” — o tom ficou ainda mais afiado — “...de você, espero algo além da perfeição. Você carrega um talento que transcende a compreensão. Você não é apenas uma filha desta família... é o ápice da nossa linhagem.”
Um frenesi contido se espalhou. Nobres sussurravam, abaixando levemente as cabeças como se até comentar fosse perigoso:
— “O ápice... ele disse isso?...”— “Lysielle... o prodígio que não surge nem uma vez a cada mil anos...”— “Se ela realmente corresponder, não haverá outro nome além dos Ravencout no topo deste Império...”
Os três irmãos estavam perfilados diante do altar, vestindo suas túnicas brancas com detalhes azul-cobalto, representando a pureza da linhagem e o laço com o mana primordial.
Mas enquanto Caine mantinha uma expressão rígida, e Vellatrice exibia um sorriso frio e confiante, Lysielle estava serena, de olhos fixos no círculo mágico diante dela.
O ancião da família, segurando o grimório sagrado, avançou até o centro. Sua voz soou carregada de solenidade:
— “Lysielle Ravencout, filha primogênita da Casa Ravencout... você tem permissão para iniciar sua invocação espiritual.”
Ela respirou fundo, e então, dando um passo à frente, ergueu as mãos, posicionando-as sobre o círculo mágico. Seu olhar não tremia.

Lysielle se aproximou do altar e dos círculos mágicos, ela estendeu a mão serenamente e com voz firme começou a entoar os cânticos de invocação passados de geração em geração em sua família.
todos esperavam testemunhar a manifestação de mais uma lenda. A filha primogênita dessa geração possuía um talento acima de qualquer ancestral de sua família, mesmo os lendários.
E então ela estendeu a mão, traçando o selo antigo no ar.

O círculo mágico tremia, pulsando cada vez mais, como se estivesse prestes a transbordar. Faíscas de mana azul se erguiam no ar, desenhando símbolos antigos que rodopiavam ao redor de Lysielle. Os olhos de todos os presentes estavam fixos nela — na herdeira prodígio, na lenda viva que prometia superar qualquer expectativa.
O cântico prosseguia:
— “...Que a conexão se forme e o elo eterno se manifeste... Ó entidade destinada, atenda ao chamado do meu espírito...”
De súbito, um clarão intenso preencheu o salão. Muitos ergueram as mãos para proteger os olhos, enquanto outros olhavam, fascinados, antecipando o surgimento de uma criatura lendária.
O círculo mágico se rompeu... e no centro, uma pequena esfera de luz tremeluzente surgiu. Quando a luz se dissipou, revelou-se... algo completamente inesperado.
Flutuando lentamente, envolto em uma névoa dourada, estava… uma fada. Não maior que a palma de uma mão, com asas translúcidas e orelhas pontudas. Seus olhos eram grandes, reluzentes como estrelas, e ao ver Lysielle, soltou um pequeno som agudo, quase como um “pii~” fofo.
Silêncio. Um silêncio cortante, sufocante, que durou longos segundos.
E então... começaram os sussurros.
— “...O que...?”— “Isso... isso é uma piada, certo?”— “Não pode ser... isso não pode ser a invocação da primogênita...”— “Mas... ela não era o prodígio absoluto dos Ravencout...?”
Os murmúrios se tornaram cochichos mais altos. Algumas risadas tímidas escaparam, contidas por mãos, mas audíveis o suficiente para rasgar o silêncio.
Os olhos de Lysielle, antes cheios de convicção, agora tremiam. Ela olhou para a pequena criatura, perplexa, enquanto sentia o olhar esmagador de todos os presentes.
Então... passos.
Passos rápidos. Firmes.
Seu pai, Gilbert Ravencout, sem dizer uma única palavra, virou-se abruptamente e saiu do salão. O som de sua capa arrastando-se pelo mármore parecia um veredito final.
Sua mãe Lady Elowen permaneceu no lugar, mas estava imóvel, pálida, com os olhos vagos, como se seu espírito tivesse se deslocado para outro lugar. Ela não olhava para Lysielle. E era impossível descrever oque ela pensava.
E seus irmãos...
Vellatrice segurava a mão sobre os lábios, tentando, sem sucesso, conter um sorriso escancarado. Seus olhos brilhavam de puro prazer malicioso.Caine, mais reservado, cruzou os braços e balançou a cabeça lentamente, esboçando um sorriso de escárnio contido.
— “Tsc... então esse é o nosso prodígio?” — murmurou, em tom baixo, apenas o suficiente para que alguns nobres mais próximos ouvissem.
As conversas explodiram.
— “Inacreditável...”— “Uma falha total... Ela é mesmo da linhagem dos Ravencout?...”— “Como isso é possível?!”— “Será que ela era superestimada esse tempo todo...?”
Lysielle sentia seu corpo inteiro tremer. Suas mãos apertavam as laterais do vestido, tentando conter a ansiedade sufocante, o nó que se formava em sua garganta. Ela tentou falar... tentou se defender... mas nenhuma palavra saiu.
A pequena fada flutuante olhava para ela, confusa, dando pequenos giros no ar, sem entender o que acontecia.
O ancião, desconcertado, precisou limpar a garganta duas vezes antes de falar, visivelmente constrangido:
— “...A conexão... foi... bem... concluída...” — disse, hesitante, — “Poderemos agora prosseguir... com o próximo herdeiro.”
Aquela frase soou como um prego batendo na tampa de um caixão. Pois a cerimônia de invocação era apenas uma vez na vida, e se fosse falha, prejudicaria para sempre o invocador. Era para esse momento a qual Lysielle havia treinado a vida inteira e se dedicado.
O olhar de todos se desviou dela, como se sua existência ali não passasse mais de um incômodo.
O chão parecia a querer engolir. Seu coração, que outrora carregava orgulho, agora estava cada vez mais apertado e sem fôlego.
O som das batidas dele ecoavam com força nos ouvidos de Lysielle enquanto ela apertava os punhos, lutando com todas as forças para impedir que as lágrimas transbordassem. Seus olhos ardiam. A garganta, trancada, implorava por ar, por qualquer palavra... mas nada saía. Nada além daquele vazio sufocante.
Foi quando, à distância, Leonhardt von Ainsworth — de pé, próximo a uma das colunas laterais — inclinou levemente a cabeça para o lado, em um gesto breve, quase imperceptível, como quem silenciosamente dizia:“Vá. Está tudo bem.”
Lysielle captou a mensagem de imediato.Respirou fundo, ajeitou as mãos sobre o vestido e se virou. Seus pés, trêmulos, começaram a se mover. No início, ela caminhava rápido, desviando dos olhares, fingindo algum tipo de dignidade... mas depois simplesmente não conseguiu mais.
Correu.
Correu pelo corredor lateral do salão, empurrando a porta com violência, ignorando os olhares, ignorando até a própria respiração descompassada que parecia falhar a cada segundo.
E então, no instante em que ela havia começado a correr, um som bem alto pôde ser ouvido por todo o salão atrás dela.
— “Pfff... HAHAHAHAHAHAHA!!” — Vellatrice não segurou mais. Gargalhou alto, como se tivesse esperado por aquele momento a vida inteira. Suas mãos seguravam a barriga enquanto ela quase se dobrava de tanto rir. — “Isso... isso é real?! A nossa irmã prodígio... invocou... uma fadinha de brinquedo!!”
Outros nobres se entreolharam, tentaram conter... mas cederam.
— “HAHAHAHA!!”— “Deus... que vexame!”— “Inacreditável... eu jamais pensei que viveria pra ver isso...”

Diversos outros davam alfinetadas ainda mais dolorosas mais que não escaparão aos ouvidos de Lysielle enquanto ela corria.
O riso se espalhou como uma praga, ecoando por todo o salão. Algumas damas escondiam a boca com os leques, outras não se davam sequer ao trabalho. Homens riam, cochichavam, zombavam sem qualquer pudor.
Caine soltou um suspiro debochado, olhando de lado:
— “Patético...” — sussurrou, antes de virar o rosto, fingindo indiferença, mas deixando claro seu desprezo.
Os risos e comentários só pararam rápido pois a própria Lady Elowen parecia insatisfeita, seu olhar severo pôs tanta pressão sobre os nobres que eles se calaram no mesmo instante e a cerimônia pôde prosseguir.
Lysielle apertava os dentes. As lágrimas escorriam, não havia mais como segurar. Seu peito parecia prestes a explodir de dor, vergonha e impotência.
"Por quê...?" — pensava, desesperada, — "Por que... justo comigo... justo agora...?"
Anos... não, uma vida inteira de treinamento. Dias que começavam antes do nascer do sol e terminavam muito depois que a lua já estava alta. Uma infância sacrificada, horas, dias, meses... para isso.
Tudo... tudo para este momento.
E agora... seu mundo desabava.
Ao atravessar o último corredor, empurrou a porta de seu quarto com tanta força que ela quase saiu do trilho. Jogou-se contra a cama, apertando o travesseiro com tanta força que seus dedos ficaram brancos.
O som abafado dos risos ainda parecia ecoar dentro da cabeça dela, mesmo a portas fechadas.
— “Por que...?” — sussurrou, sufocada, — “Por que... comigo...?!”
Seu corpo inteiro tremia, sua respiração estava descompassada, e lágrimas quentes deslizavam incessantemente por seu rosto.
Tudo pelo que viveu... foi esmagado naquele único instante.
Foi então que no meio da névoa de seus pensamentos sentiu algo leve tocar seu cabelo a trazendo de volta a realidade.
Virando lentamente o rosto molhado de lágrimas, viu a pequena fada pairando acima dela. Sem dizer nada, ela pousou sobre sua cabeça e… acariciou seus fios com delicadeza, como se dissesse: “Está tudo bem.”
Aquele gesto… tão simples, tão puro… quebrou algo dentro de Lysielle.
Ela riu, mesmo entre as lágrimas. Uma risada fraca, trêmula, mas real.
— Você… — murmurou, sentando-se lentamente. — Você não precisa me consolar baixinho…Ela ergueu a mão e a criatura pousou ali, leve como um floco de neve
A pequena fada girou no ar, fazendo uma voltinha antes de apertar a testa dela de novo, como se dissesse “Claro que não!”.
— “Pii~!”
Lysielle riu baixinho, levando uma das mãos até os olhos para limpar o excesso das lágrimas. E, com aquele sorriso tímido, olhou mais uma vez para a criaturinha.
— “Auri...” — sussurrou. — “Seu nome vai ser Auri... Auri...”
A fada girou no ar de novo, feliz, batendo as asinhas com mais força, deixando um pequeno rastro de luz dourada no ar, como se celebrasse aquela escolha.
— “Pii~! Pii~!”
Lysielle segurou Auri com ambas as mãos, apertando-a contra o peito, como se quisesse proteger aquilo que, naquele momento, era tudo para ela.
— “Obrigada... Auri...” — sussurrou, fechando os olhos, permitindo que aquele pequeno fragmento de felicidade se espalhasse dentro de si. — “Obrigada... por estar comigo...”
E, naquele instante... mesmo que o mundo inteiro tivesse desmoronado lá fora... Lysielle, pela primeira vez desde a humilhação, sentiu que... talvez... só talvez... ela não estivesse tão sozinha assim.
Mas... enquanto aquele frágil conforto se formava, do outro lado da mansão... uma tensão completamente diferente começava a tomar forma.
Leonhardt von Ainsworth caminhava pelos corredores da mansão com passos firmes, embora contidos. Seu rosto envelhecido, marcado pelo tempo e pela experiência, mantinha a mesma expressão sóbria de sempre — uma máscara de compostura que escondia a desaprovação crescente.
Parou ao avistar quem procurava. Ali estava o patriarca dos Ravencout, afastado do salão, apoiado próximo a uma coluna, com os braços cruzados e o olhar frio, quase gélido. Seu semblante, no entanto, era mais do que apenas rigidez... era puro desprezo.
Leonhardt se aproximou, mantendo a postura impecável.— Então é assim... — disse com voz baixa, porém firme. — É assim que resolve isso?
O olhar do patriarca se apertou, tornando-se hostil no mesmo instante.— Fique fora disso, Leonhardt. Isso não lhe diz respeito. — Sua voz era seca, carregada de frieza.
— Ela é sua filha. — rebateu sem alterar o tom, apenas deixando a frase pesar no ar.
O patriarca respirou fundo, como se conter a irritação lhe exigisse esforço.— Ela foi uma decepção... nada além disso. — disparou, com os olhos estreitos. — E você faria bem em lembrar que seu papel aqui terminou há muito tempo.
Alguns nobres aliados a facção de Gilbert que transitavam pelo corredor pararam, atraídos pela tensão evidente. Olhares se cruzaram, sussurros surgiram. Não demorou para que se formasse um pequeno círculo, todos observando, alguns com sorrisos sutis, outros com claras expressões de diversão maliciosa.
O patriarca então se virou levemente para eles, elevando a voz, sem tirar os olhos de Leonhardt:— Este homem não é mais bem-vindo nesta casa. Acompanhem-no até a saída.
Leonhardt manteve o semblante inabalável. Apertou levemente a bengala de prata que segurava, respirou fundo, e sem sequer abaixar a cabeça, se virou. Seus olhos não refletiam raiva... mas uma mistura amarga de frustração, desapontamento e, acima de tudo, indignação.
Sem dizer mais uma palavra, deixou os corredores da Mansão Ravencout, seguido de perto pelos olhares julgadores e pelas sombras da arrogância que tanto desprezava.