A mata era espessa, sufocante. Mesmo com o sol acima das copas retorcidas das árvores, a floresta de Umbrathara parecia engolir a luz — uma sombra viva, repleta de sussurros antigos e segredos esquecidos.
— Senhor, essa é a estrada por onde passará a escolta daquela jovem senhorita. — murmurou um dos bandidos, ajoelhado ao lado do líder.
O homem era alto, com o rosto marcado por cicatrizes profundas como trincheiras, e os olhos semicerrados fixos no estreito caminho diante deles. Um sorriso perverso se formou lentamente em seus lábios, enquanto apertava o punho de sua espada com antecipação.
— Iremos esperar mais adiante. Preparem-se, hoje teremos uma doce carnificina. — disse ele, com uma voz rouca que parecia arranhar o ar.
Horas depois, distante dali, a escolta de Lysielle Ravencourt avançava pela estrada. O som ritmado dos cascos ecoava pelo terreno, enquanto a densa floresta começava a cercá-los gradualmente.
Após três horas de viagem, o grupo chegou a um pequeno vilarejo cercado por cercas de madeira e casas simples. O ambiente era pacato, quase acolhedor, mas o olhar dos aldeões denunciava um receio profundo.
Um velho aproximou-se montado em um cavalo de pelagem cinzenta. Seu rosto era enrugado, mas seus olhos mantinham a firmeza de quem já vira mais do que gostaria. Ele parou diante do capitão da escolta e curvou levemente a cabeça em sinal de respeito.
— Cavaleiro, peço licença para um aviso. — começou, com voz serena. — Os vilarejos da região, que vivem à sombra da grande floresta de Umbrathara, evitamos adentrar suas profundezas. Dizem que coisas antigas dormem sob aquelas árvores, e que os que ousam perturbá-las... não retornam.
O capitão assentiu com respeito, mas manteve o olhar firme.
— Agradeço seu conselho, senhor. Mas nosso dever é claro, e a estrada de Amin é o caminho mais direto até a capital. Não podemos recuar.
O ancião suspirou, passando a mão pela longa barba branca, seus olhos denunciando uma preocupação sincera.
— Se não podem evitar a estrada, então que os deuses os acompanhem. — disse, antes de fazer uma breve saudação e retornar lentamente por onde viera, como se carregasse o peso de um mau presságio nos ombros.
Após isso, um certo tempo seguindo a estrada a frente de seguiu, apesar de não terem tido nenhum problema durante o caminho algo não parecia certo com aquele lugar.
Os soldados da escolta sentiam o ar se tornar mais denso à medida que avançavam pela antiga estrada da Floresta de Umbrathara. O farfalhar das folhas parecia mais baixo. O ar, mais úmido. E o silêncio, mais pesado.
— Eu não sei o que é isso… mas tá ficando difícil de respirar… — murmurou um dos cavaleiros, franzindo o cenho. — Essa sensação opressora… sufocante.
Outros soldados assentiram em silêncio. Todos estavam em alerta, olhos atentos à vegetação cerrada.
— Não é apenas sua imaginação. — respondeu Garrik, o capitão da escolta, com o tom grave. — Séculos atrás, quando o Império começou a se erguer, ele se expandiu como fogo em grama seca. Tomou terras, queimou reinos, destruiu culturas. Raças inteiras desapareceram diante do avanço das legiões imperiais.
Ele fez uma breve pausa, os olhos fixos na trilha à frente.
— Elfos negros, dríades, tribos Demi- humanas… algumas foram dizimadas. Outras fugiram para sobreviver. Uma das rotas de fuga foi justamente essa floresta — Umbrathara. Dizem que, desde então, seres não humanos ainda vivem em seu interior, longe dos olhos imperiais.
Os homens da escolta ouviram em silêncio, o respeito e a tensão crescendo a cada palavra.
— Senhor… está dizendo que essas raças ainda existem? Aqui, dentro do próprio Império?
— Sim. Muitas migraram para a União Abalaths, a federação de nações não-humanas ao norte. Mas nem todas. Algumas se esconderam em florestas como esta, ou em montanhas distantes. E há rumores de que continuam vivas… velando suas terras, odiando tudo o que o Império representa.
Garrik respirou fundo e olhou por sobre o ombro.
— Foi uma guerra real, e brutal. E os Ravencourt foram uma das casas nobres que mais contribuíram para que o Império triunfasse sobre esses povos. Por isso, hoje, sua casa é vista como um símbolo de poder e status. Não é à toa que as terras deles ficam tão próximas da capital.
Os soldados assentiram com respeito, compreendendo melhor a situação.
Enquanto isso, dentro da carruagem, o clima era completamente diferente.
Lysielle repousava com a cabeça no colo de Liora, parecendo tranquila, quase sonolenta. Liora, sentada com as pernas encolhidas, oferecia uvas com a ponta dos dedos, visivelmente desconfortável com a situação.
— S-senhorita… acho que isso já é um pouco… demais…
— Hm? — Lysielle semicerrava os olhos, saboreando outra uva. — Você não estava toda derretida com a minha invocação outro dia? Por que não mostra esse carinho por mim também? Ou será que sou menos charmosa que ele?
Derrepente, Lysielle parou e seu olhar se tornou mais sério e distante. Ela ficou em silêncio por alguns instantes, deitada no colo de Liora com o rosto voltado para cima… até que, lentamente, virou-se de costas.
Não disse nada.
Mas aquele gesto bastava.
Liora entendeu. Sem perguntas, sem dúvida alguma. O tempo ao lado da jovem Ravencourt havia lhe ensinado a ler seus silêncios com a mesma precisão que se lê palavras num livro aberto.
Ela pegou o leque sobre a pequena mesa ao seu lado, onde Auri, também sendo punido, estava amarrado. Mesmo se debatendo com expressão infeliz e soltando pequenos grunhidos de protesto, nenhuma das duas parecia prestar atenção. Liora, com cuidado, começou a abanar sua senhorita. Sua outra mão deslizava gentilmente pelos cabelos brancos de Lysielle, separando as mechas com delicadeza, como se cada fio fosse precioso demais para ser puxado.
E então, sem que Lysielle pedisse, Liora começou a cantar.
A canção era baixa, doce, quase um sussurro. Mas bastou a primeira estrofe para que a jovem nobre se deixasse levar.
Seus olhos se fecharam. E no instante seguinte… ela já não estava mais ali.
Em sua mente, um quarto escuro surgiu como véu puxado de repente.
Era o quarto de quando era criança. A luz pálida da lua entrava pelas janelas longas, e o frio da pedra se misturava à dor que cobria seu corpo.
Lysielle estava sentada na beira da cama, com o torso nu coberto de bandagens. Vários curativos já estavam encharcados de sangue seco. Seus braços tremiam enquanto tentava alcançar as costas para trocar as ataduras, mas cada tentativa trazia apenas mais dor.
Ela se encolheu, os olhos brilhando de frustração e lágrimas mal contidas. O peito arfava com esforço. E, por um instante, sentiu que iria desabar ali mesmo, sozinha como sempre estivera.
Foi quando a porta se abriu devagar.
E então... uma garota apareceu.
Uma criança tão jovem quanto Lysielle, com olhos ansiosos e respiração acelerada, carregando nas mãos uma pequena toalha e um frasco de unguento mal tampado.
Lysielle a fitou surpresa por um momento. Seus olhos dourados estavam sem brilho e cansados, mas a voz saiu baixa, quase trêmula.
— …Liora?
A pequena correu até ela sem hesitar. Seus passos descalços batiam no chão de pedra como se temesse chegar tarde demais. Sem dizer uma palavra, subiu na cama e se sentou atrás da senhorita ferida. Pegou uma das bandagens e, com dedos pequenos, mas cuidadosos, começou a trocá-las.
Havia dor… mas também alívio.
Lysielle mordeu o lábio, tentando não chorar. Mas quando a garota terminou os curativos, ela a abraçou pelas costas. Aquele abraço não dizia "vai ficar tudo bem", porque ambas sabiam que não ia.
Ele dizia apenas: “Estou aqui.”
E então, suavemente, a menina começou a cantar. Uma melodia trêmula, quase sem afinação, mas repleta de sentimento. A canção não era perfeita. Mas era real. E isso bastava.
Naquela noite… e em tantas outras que vieram depois.
De volta ao presente...
Lysielle não disse nada.
Apenas se encolheu ainda mais no colo de Liora. Seu corpo tremia levemente, e uma lágrima escorreu silenciosa, desaparecendo no tecido da saia da criada.
Liora não parou de cantar. Nem mudou o tom.
Ela sabia.
Sua senhorita era forte. Mais do que qualquer um.
Mas mesmo os fortes… têm medo.
E com razão.
Afinal, poucos talentos retornavam vivos da Academia Imperial.
Já do lado de fora da carroagem.
Enquanto as últimas luzes do dia desapareciam com o pôr do sol, a floresta de Umbrathara mergulhava em um silêncio espesso e inquietante. As sombras se alongavam como dedos escuros por entre as árvores, e o som do vento nas copas parecia mais pesado, abafado — quase forçado.
Os soldados da escolta estavam visivelmente tensos.
— Escureceu rápido... — murmurou um dos cavaleiros na linha da frente, seus olhos varrendo as copas com cautela.
— Rápido demais... — completou outro, lançando um olhar desconfiado à névoa que começava a rastejar pelo solo.
Foi então que uma das cavaleiras da escolta, Lina, desmontou sem dizer uma palavra. Ajoelhou-se no chão e vasculhou entre as folhas secas. A caravana desacelerou.
Todos a observavam em silêncio enquanto ela esfregava a ponta dos dedos no solo, e então os levou aos olhos dourados, franzindo a testa com desconfiança.
— Há algo aí, Lina? — perguntou um dos companheiros, conduzindo o cavalo devagar até perto dela.
Mas antes que ela respondesse, seu corpo se enrijeceu. Seus olhos se arregalaram.
— Isso é... magia! — exclamou, erguendo-se de súbito.
Mal as palavras deixaram sua boca, uma linha de mana flamejante rasgou o ar como um raio vermelho. O clarão atingiu em cheio o flanco de um dos cavalos
O cavalo soltou um relincho agudo, aterrorizado. Seus músculos tensionaram e as patas dianteiras deixaram o chão por um instante antes de ele girar e perder o equilíbrio caindo para o chão. Ao se erguer, o animal fugiu desgovernado pela trilha, desaparecendo entre as árvores com o olhar em pânico.
Seu cavaleiro, por outro lado, não teve a mesma sorte. As chamas o envolveram de imediato, se espalhando com rapidez, mas queimando devagar — de dentro pra fora, por baixo da armadura. Ele caiu no chão se debatendo, gritando em agonia enquanto o metal chiava contra a pele. Seus braços batiam no solo, tentando apagar um fogo que parecia grudar na alma. Mas era inútil. E o cheiro de carne queimada tomou o ar rapidamente.
Enquanto os gritos do cavaleiro ecoavam pela floresta, uma ordem ainda mais forte foi preferida.
— EM FORMAÇÃO! — bradou Garrik, puxando a espada. — PROTEJAM A CARRUAGEM!
Mais feixes de mana voaram entre os troncos. Os cavaleiros revestiram os próprios corpos em um segundo com camadas de mana — auras azuladas, verdes e rubras iluminando brevemente o cenário. A floresta explodiu em movimento.
Sombras saltaram das árvores. Eram rápidos demais para mercenários comuns. Homens de mantos escuros, armas em punho, atacando em sincronia. O som abafado dos passos na terra mal os denunciava.
O primeiro choque foi brutal. Um dos soldados girou a lança no ar e a travou contra a espada de um inimigo. Faíscas surgiram no impacto, e os dois se separaram em seguida, apenas para colidirem novamente com força redobrada.
Duas silhuetas cruzaram por trás — um dos mercenários girava adagas curtas enquanto duelava com um soldado de cabelo raspado, desviando por milímetros de cada golpe, como se já soubesse os movimentos do inimigo.
Mais adiante, uma figura imponente com uma clava partiu um dos escudos com um único golpe, atirando o soldado contra uma árvore. Sua aura escura ondulava como fumaça pesada, opressora, como se drenasse o ar em volta.
Três deles... eram diferentes. Suas presenças rasgavam o campo de batalha com pura pressão mágica. Cada passo, cada ataque, parecia mais calculado — e mortal.
Lysielle se ergueu dentro da carruagem, seu instinto de guerreira estava em alerta máximo.
— Tenho que ir! — exclamou, colocando um colete de couro.
— Não! — gritou Liora, agarrando sua cintura. — Por favor, senhorita, ainda é cedo demais! Espere só mais um momento!
A carruagem estremeceu. Lá fora, os sons do combate eram caos puro: gritos, lâminas colidindo, o som surdo de corpos caindo no solo úmido.
Foi então que um dos soldados foi pego desprevenido — um golpe certeiro o lançou como um projétil em direção à carruagem.
O impacto foi brutal. O corpo do cavaleiro atravessou a lateral da estrutura de madeira como uma bala, acertando Liora em cheio. A carroagem tombou com a força do impacto e ambos foram arremessados para fora pela parede oposta, rasgando as cortinas e lascando a madeira ao redor.
— Liora!! — gritou Lysielle enquanto tentava sem sucesso, alcançar a mão de sua amiga.
Mas era tarde. E assim que a carroagem havia se estabilizado novamente após virar, o som de passos lentos e confiantes forma ouvidos se aproximando.
Das sombras, uma figura surgiu, andando com calma entre os destroços. Seus passos sobre a madeira partida eram lentos, calculados. Um sorriso largo emoldurava seu rosto sujo de fuligem e armadura leve denunciavam alguma resistência arcana.
— Então é você, menininha — disse o mercenário, a mão estendida como se não a visse como uma ameaça real.
Lysielle não respondeu.
Seu corpo já se movia. Em apenas um segundo, sua aura explodiu ao redor — e no instante seguinte, o mercenário estava havia sido acertado por dezenas de cortes que haviam sido feitos antes mesmo de ele perceber.
O corpo tombou aos pedaços, como papel sendo recortado ao vento.
Lysielle se ergueu entre os escombros da carruagem, sua expressão séria... e aterradora.
Atrás dela, Liora esta caída e escorada numa árvore, seu corpo estava cheio de ferimentos e o sangue estava escorrendo pela têmpora.
O ar voltou a pesar. A floresta, silenciosa, parecia prender a respiração.
A verdadeira batalha estava apenas começando.
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