Chapter 6:
Entre Luzes e Máscaras Quebradas
O frio da manhã percorria o pátio de pedra da mansão Ravencourt como uma névoa invisível. Os criados caminhavam apressados entre malas, caixas e instruções apressadas. O brasão da casa — o corvo em voo — tremulava nas bandeiras altas, observando tudo com sua eterna rigidez.
A carruagem já esperava à frente, escura como breu e adornada em dourado. Seus detalhes impecáveis contrastavam com o céu cinzento.
Lysielle aproximava-se com passos calculados, envolta na capa negra que arrastava suavemente pelo chão. Liora a seguia, com um pequeno baú em mãos. Atrás delas, o mordomo chefe andava em silêncio, como uma sombra discreta.
—Serão 12 dias de viagem daqui até a capital senhorita— disse o mordomo enquanto fazia um gesto pras empregadas próximas terminarem de trazer as malas de sua jovem senhorita.
Ela parou ao lado da carruagem. Por algum motivo, hesitou antes de subir.
antes de entra na carroagem, virou-se rapidamente e olhou a mansão Ravencourt uma última vez. Em uma das janelas pôde ver que sua mãe a estava vendo partir, pela primeira vez em anos ela sentiu um calor em seu peito.
Sua mãe.
Lady Elowen estava envolta num manto escuro e seu rosto severo e belo não parecia tão severo naquele dia.
Ela não acenou. Não sorriu. Apenas observava.
Mas Lysielle entendeu.
Aquela simples presença bastava. Não era o tipo de mulher que chorava ou dizia adeus... então o fato de estar ali, silenciosa, era a mais rara e valiosa das declarações.
A jovem se virou e subiu os degraus da carruagem. Seus lábios se curvaram num sorriso breve.
Pequeno, mas genuíno.
A porta se fechou com um clique suave, isolando-a do mundo exterior.
— Chá de folhas de jasmim, milady. — disse Liora com doçura, estendendo uma xícara.
— Obrigada... — murmurou Lysielle, ainda olhando pela janela.
Do lado de fora, o capitão da escolta já organizava os cavaleiros. Garrik, um homem de olhar duro e barba bem cuidada, ergueu a mão e deu o sinal. Os cavalos se moveram em uníssono, e a carruagem começou a rodar. O som das rodas sobre a pedra molhada ecoou pelos portões enquanto eles deixavam para trás o território Ravencourt.
A viagem se estendeu por dias. Cruzaram campos abertos, florestas altas e estradas irregulares. À medida que avançavam, o clima variava: manhãs frias, tardes abafadas, e uma chuva leve que parecia nunca cessar por completo.
Em cada cidade que passavam, o povo olhava com respeito. Alguns se curvavam ao brasão. Outros apenas observavam em silêncio, como quem reconhece poder à distância.
Na tarde do terceiro dia, o comboio chegou à cidade de Lorveil. As ruas de pedra estavam cheias de mercadores, camponeses, cavalos e crianças correndo de um lado para o outro. O cheiro de pão fresco e ferrugem pairava no ar.
A carruagem desacelerou diante de uma pousada robusta, feita de pedra escura e madeira antiga. Uma placa de ferro balançava ao vento com o nome: Pousada do Escudo Partido.
Garrik desceu primeiro.
Entrou no saguão, onde um estalajadeiro de expressão cansada limpava o balcão com um pano surrado.
— Boa tarde — disse o homem, forçando um sorriso. — Quartos para quantos?
— Somos dez. Precisamos de cinco quartos. Água quente, refeições para seis e estábulo para os cavalos — respondeu Garrik, direto.
O homem fez uma pausa. Seus olhos avaliaram o uniforme do capitão.
— Isso daria quinze moedas de prata.
Garrik cruzou os braços.
— Somos dez, mas só cinco dormirão. Os outros estarão em vigília. Nove moedas.
O estalajadeiro coçou o queixo.
— Isso não cobre o custo da lenha. A cidade anda cheia. E há o feno para os animais...
— Dez moedas. Inclua banho quente e uma refeição reforçada para a senhorita Ravencourt. — rebateu Garrik, firme, mas educado.
O homem pensou por um instante, então assentiu com um suspiro.
— Está certo. Dez moedas, então.
— Ótimo. — disse Garrik, entregando as moedas com precisão.
Enquanto os soldados descarregavam os pertences e os cavalos eram levados ao estábulo, Lysielle observava da janela do quarto superior. Liora já organizava suas roupas sobre uma cadeira de madeira escura.
— A cama parece confortável. — comentou a criada.
— Por enquanto, está tudo tranquilo demais. — murmurou Lysielle, sem desviar os olhos da cidade lá embaixo.
— Está preocupada com algo?
— Só estou atenta.
Liora se aproximou com um pente de prata.
— Vai querer que eu penteie seus cabelos?
— Sim, por favor.
Enquanto a criada a penteava com cuidado, o vento da janela aberta trazia o som de cavalos, vozes, risos, passos. A cidade parecia viva. A estrada até agora tinha sido calma… até demais.
Mas Lysielle sentia algo.
Uma presença. Um pressentimento.
A calmaria antes da queda.
E no fundo, sabia: estava cada vez mais longe de casa... e cada vez mais perto do desconhecido.
Após pentear com carinho os cabelos brancos e curtos de Lysielle, Liora recolheu a escova com um sorriso satisfeito.
— Estou indo para a cama primeiro. Até amanhã, Liora — disse Lysielle suavemente, enquanto se aconchegava no colchão.
Auri, como se entendesse que sua presença era bem-vinda, subiu devagar até sua mestra e se acomodou ao lado dela. Lysielle não hesitou em envolvê-lo com um abraço terno, repousando o rosto contra sua fofura quente.
— Sabe... eu andei tão preocupada — murmurou, quase num sussurro, acariciando as asinhas adormecidas da pequena fada —, mas eu acredito que... coisas boas ainda podem acontecer...
— Sou grata, por você estar comigo... — sussurrou, os olhos já pesando.
E assim, envolta no silêncio suave da noite e no calor discreto de seu pequeno companheiro, Lysielle adormeceu.
Na manhã do quarto dia, os primeiros raios do sol entravam preguiçosamente pela janela do quarto, riscando o chão de madeira com tons dourados. Um aroma aconchegante de pão recém-assado e chá de rosas flutuava no ar, aquecendo o ambiente com um toque quase maternal. Lysielle ainda estava meio encolhida entre os lençóis, abraçando suavemente Auri contra o peito como uma criança que sonha em silêncio.
A cama da pousada era surpreendentemente macia para um local de estrada, e aquele momento raro de conforto a fez adormecer de novo por alguns minutos.
Quando abriu os olhos de novo, Liora já estava ali, como um bom espírito matinal, equilibrando uma bandeja com perfeição e um sorriso que só ela saberia manter tão cedo.
— Bom dia, jovem senhorita! Trouxe pão quentinho e chá fresco!
Lysielle se espreguiçou devagar, esfregando os olhos com os dedos enluvados. Um leve bocejo escapou de seus lábios enquanto ela tentava se situar no tempo e no espaço.
— Hnng... obrigada, Liora... — murmurou, sonolenta.
Mas então, ao procurar Auri pela cama com a mão, sua expressão se transformou. Lençóis vazios. Nenhum sinal da pequena fada.
— Hã? Cadê o... — Ela se interrompeu.
Lysielle já havia notado. Algo no decote de Liora... se mexia.
A nobre arqueou uma sobrancelha devagar, a expressão se apertando em desconfiança. Antes mesmo que dissesse algo, Liora notou o olhar suspeito — e, num ato incrivelmente desajeitado, tentou casualmente cruzar os braços em frente ao busto... e empurrar disfarçadamente o que quer que estivesse lá pra dentro.
Disfarçadamente demais.
— Liora... — começou Lysielle, seca. — O que é isso... no seu decote?
— H-hein?! Decote? — Liora levou uma mão ao peito, forçando a expressão mais falsa de surpresa que a história da atuação já presenciou. — Não tem nada aqui! Você deve estar vendo coisas!
A cabeça minúscula e dourada de Auri então emergiu brevemente entre os tecidos, olhando em volta inocentemente com seus olhinhos brilhantes.
— ~pih... — fez ele.
Lysielle congelou. Auri também. Eles se encararam por uma fração de segundo.
E então, como um culpado pego em flagrante, o pequeno se enfiou de volta com um “~pih!” apavorado, sumindo no decote como se fosse seu buraco de esconderijo pessoal.
A expressão de Lysielle... se despedaçou. A postura elegante foi esquecida. O ar nobre deu lugar a um brilho selvagem no olhar.
— MAS É TODO DIA ISSO?! — explodiu, levantando da cama com o cabelo ainda bagunçado e o pijama torto.
— Liora… — disse ela com uma voz arrastada, polida, de quem ainda segurava as últimas cordas da compostura — ...tem alguma explicação lógica para a MINHA INVOCAÇÃO estar… aí?
Andou como um furacão em direção a Liora, que deu um passo pra trás com a bandeja tremendo nas mãos.
— E..Espere, não é o que parece! Ele... ele entrou sozinho!! — tentou justificar.
— Aham. — Com dois dedos firmes e sem cerimônia, Lysielle pescou Auri de dentro do vestido da criada como quem retira um doce roubado do bolso de uma criança teimosa. — Peguei no flagra, senhor delinquente.
Auri se debatia, soltando “~pih! ~pih!” de pura vergonha.
Lysielle o amarrou com fitas na cabeceira da cama, com toda a solenidade de um juiz aplicando sentença.
— Você vai ficar aí. E pensar muito bem sobre o que fez.
Lysielle fitou Auri por alguns segundos. Depois, girou o olhar lentamente para Liora, que agora sorria com a delicadeza artificial de quem tentou esconder um crime debaixo do tapete.
— Você achou... mesmo... que eu não ia notar? — perguntou Lysielle, com uma calma perigosamente calculada.
— Eu...? Jamais, senhorita! Eu... eu juro que não sabia que ele tava aí! Deve ter... deve ter se teleportado sozinho! Espíritos são assim, né? Cheios de surpresas... heh... — disse Liora, com o sorriso mais cínico e nervoso da história.
Um breve silêncio se instalou.
Liora então desviou os olhos, como quem calcula trajetórias de fuga. O suor escorreu levemente pela têmpora.
Sutilmente, seus pés se ajustaram no chão. Os olhos piscaram uma vez. E ela encarou a porta.
Mais um segundo de silêncio.
E então—
— EU VOU SÓ CHECAR UMA COISA ALI FORA! — gritou, disparando numa corrida desesperada, como se o diabo estivesse a dois passos atrás.
— Nem pense em fugir! — murmurou Lysielle com os olhos semicerrados, já se erguendo da cadeira.
Meio segundo depois, um som oco ecoou pelo quarto.
TOC!
Liora caiu de joelhos no mesmo lugar, com um galo novo brotando no alto da cabeça.
Ela nem teve tempo de reagir. Apenas ficou ali, com as mãos na testa e os olhos marejados, murmurando:
— Eu só queria brincar com ele um pouquinho...aii — disse Liora coçando o galo na testa com as mãos para aliviar a dor.
Lysielle voltou para o assento, bufando, e pegou o pão quentinho da bandeja. Mordeu lentamente, com a dignidade restaurada — ou quase.
— Eu não sei qual de vocês é a companhia ruim do outro. De verdade.
Auri, amarrado na cabeceira, apenas soltou um resignado:
“~pih...”
Meio dia de distância Dali, na estrada que levava a cidade de Lorveil...
A brisa fria da manhã soprava gentilmente pela estrada coberta de de névoa, enquanto o jovem de cabelos azul-escuro e olhos negros como a noite seguia calmamente montado em seu cavalo. Seu capuz longo cobria parte do rosto, e seus olhos pareciam distantes, quase entediados.
— Ei, garotinho! — gritou um homem mais à frente, surgindo ao lado de outros dois. — Por aqui tem que pagar pedágio.
Os outros dois riram, puxando suas armas com arrogância.
O garoto apenas parou o cavalo e levantou levemente o olhar.
— É mesmo?... — disse em tom neutro, quase preguiçoso.
Depois de um tempo, ele limpava a lâmina com tranquilidade antes de guardá-la na bainha. Os sons de trote do cavalo voltaram ao ritmo sereno de antes.
— Querido diário, encontrei três bandidos hoje... — murmurou, escrevendo enquanto cavalgava calmamente.
Atrás dele, na estrada, jaziam os corpos dos três homens.
— Um deles era de nível 6 e os outros dois, níveis 5. Eles tinham um pouco de dinheiro... e comida — continuou, com um leve sorriso nos lábios, balançando animadamente um saco de provisões na mão direita.
Levou a pena à boca e mordeu levemente, pensativo e satisfeito.
— Eu já estava farto de comer apenas batata...
O cavalo, então, deu um pequeno salto repentino ao pisar numa pedra.
— Hm?
O saco de comida escapou de sua mão.
— Espera... não...!
Ele tentou agarrá-lo, mas o saco já rolava pela beira da estrada. Num segundo, caiu e desapareceu penhasco abaixo.
O garoto ficou parado. Apenas olhou para o vazio onde sua comida sumira.
Sua expressão por fora serena e tranquila, mas por dentro...
— Maldita estrada... — pensou o garoto, enquanto uma singela lágrima escorria silenciosamente pelo seu rosto.
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