Chapter 4:
Entre Luzes e Máscaras Quebradas
A mulher estava ali. E sempre esteve.
Permanecia imóvel, poucos metros distante, como se sua presença fosse tão natural quanto o próprio ar. Seu uniforme de empregada, negro com detalhes em branco, não escondia — ao contrário, realçava — a imponência que ela carregava em cada gesto, cada respiração, cada passo não dado.
Seus cabelos estavam presos num coque impecável, sem um único fio fora do lugar. Seus olhos eram frios, cinzentos, como aço polido. E, acima de tudo... eles não piscavam.
O silêncio que seguiu foi desconfortável, opressor, como se o próprio ambiente entendesse que algo... predatório estava de presente.
O olhar dela percorreu a arena. Passou lentamente pelos corpos abatidos dos irmãos Ravencourt — caídos, humilhados — e então deslizou, sem nenhuma pressa, até Lysielle.
A jovem ainda estava ajoelhada, arfando, o corpo inteiro tremendo de dor e exaustão. Sangue escorria pelo canto dos lábios, manchas tingiam sua roupa.
Por um instante... parecia que aquela mulher, aquela empregada de expressão inabalável, seria capaz de caminhar até ela e simplesmente... quebrar seu pescoço. Sem hesitar. Sem alterar o ritmo dos próprios passos.
A arena mergulhou num silêncio estranho quando os aplausos cessaram. A figura da empregada — discreta, imponente e envolta num ar de autoridade silenciosa — caminhou lentamente até os herdeiros Ravencourt desacordados no chão. Seus passos eram leves, mas cada movimento carregava uma precisão militar, como se sua simples existência impusesse ordem ao caos.
Ajoelhou-se diante de Caine e vellatrice. Seus olhos, de um tom indefinido entre o âmbar e o vinho, pareciam pesar os corpos dos dois com um misto de frieza e cálculo.
— “Os herdeiros da família Ravencourt... passaram por provações lamentáveis.”
Lysielle congelou. A frase ecoou como veneno destilado, mas o que mais a feriu foi o que não foi dito.
Ela, a primogênita da família, que também carregava o nome Ravencourt, foi... ignorada e removida da equação deliberadamente.
A fúria subiu à cabeça como sangue quente. Sem pensar, o estalo da lança negra foi ouvido.
A lâmina cortou o ar num golpe direto e violento — um reflexo puro de orgulho ferido.
A empregada se levantou com calma. Sua mão ergueu-se, encontrando o fio da arma com precisão absoluta.
O impacto foi abafado, como se Lysielle tivesse golpeado uma muralha coberta por veludo.
Num único gesto, a mulher deslocou levemente o pulso e desviou a trajetória da lança, desestabilizando Lysielle.
A jovem tropeçou, o corpo perdendo equilíbrio, a fúria virando confusão num segundo.
— Eu também sou uma Ravencourt! — bradou Lysielle, ainda buscando firmar os pés.
Nesse exato instante, um brilho dourado explodiu no ar, como uma fagulha celestial.
— ~Pihh!
Auri surgiu como um raio furioso de luz. Suas asas tremeluziam com indignação pura.
— ~Pihh! ~Pihh! ~Pihh!
Como uma pequena tempestade de glitter irritado, o minúsculo ser voou direto até Lysielle e...
se jogou contra sua testa com um impacto surpreendentemente forte para algo tão pequeno.
— Ai! Auri?! — gemeu Lysielle, caindo de joelhos no chão de pedra, claramente confusa.
A pequena fada girava em torno dela como um cometa irado, os bracinhos cruzados, os olhos faiscando, berrando uma série de ~pihh! ~pihh! ~pihh! num tom acusador.
Sem saber o que fazer, Lysielle caiu na posição de seiza, com as pernas dobradas sob si e a cabeça abaixando e levantando várias vezes.
— M-me desculpa! Me desculpa, Auri! Eu... eu não vou fazer isso de novo! — dizia ela, a cada ~pihh, sua voz mais culpada.
Auri puxava uma mecha do cabelo dela com ambas as mãos minúsculas, resmungando com tanta intensidade que parecia emitir faíscas douradas.
Em um momento especialmente dramático, se bateu contra a testa dela novamente, dessa vez com um som seco e um novo ~pihh! ultrajado.
A empregada, que até então mantinha o semblante estoico, arqueou uma sobrancelha — um gesto tão raro que parecia romper a compostura de pedra da mulher.
"O que... o que diabos está acontecendo aqui...?"
Auri, por fim, ergueu o rosto com olhos grandes e lacrimejantes, ainda segurando a mecha de cabelo da jovem Ravencourt.
Seu olhar não era mais zangado, e sim... profundamente magoado.
Lysielle silenciou. Os olhos dela suavizaram.
— Eu... me preocupei com eles, mas não pensei em mim, né?
Auri soltou a mecha de cabelo, ainda fungando um ~pihh... mais baixo.
—vou tomar mais cuidado...eu prometo— Lysielle falou enquanto fez um leve carinho na cabeça pequena de Auri com as mãos.
Ela ainda estava sentada em seiza, respirando com dificuldade, quando sentiu uma onda morna e suave tocar sua pele.
Pequenos fragmentos de luz dourada começaram a brilhar em torno dela como pólen encantado dançando no vento.
Auri, ainda com os olhinhos marejados, ergueu as mãozinhas para o céu.
Um sutil anel dourado se formou ao redor de Lysielle. E então, começou a cair sobre ela partículas de luz.
Suas feridas – os arranhões, os hematomas, a dor nos músculos – começaram a desaparecer como poeira levada pelo vento.
Mas Lysielle arqueou levemente as sobrancelhas:
— M-minha mana...
Conseguia sentir. Enquanto era curada, sua própria mana era drenada, pouco a pouco, como se Auri só pudesse operar tamanha magia usando a energia dela como combustível.
Era uma cura poderosa. Precisa. Quase divina.
E impossível de ser realizada por um ser tão pequeno — ou assim pensava qualquer um até ver.
A empregada estreitou os olhos, surpresa pela primeira vez desde que pisara na arena.
— ...Magia de cura...? Desse nível?
Sua voz soou baixa, mas carregada de espanto genuíno.
— Isso... não deveria ser possível — murmurou a empregada, sem conseguir desviar os olhos.
Auri olhou para Lysielle uma última vez.
Segurando a ponta de sua franja com carinho, soltou um pequeno e sussurrado ~pihh..., desta vez sem bronca, apenas cheio de ternura.
E então...
se desfez lentamente em partículas douradas, como uma estrela que se apaga com delicadeza.
O silêncio que veio depois parecia sagrado.
Lysielle esfregava a testa ainda vermelha após a "bronca fofa", enquanto a empregada apenas observava.
Ela permanecia em silêncio... mas algo mudara.
Aquelas íris cinzentas, frias como lâminas, estavam agora ligeiramente semicerradas, como se analisassem uma criatura rara demais para se tocar.
A empregada fitou o local onde Auri havia sumido — sua mente trabalhando em silêncio, como engrenagens ocultas.
“Transferência mágica espontânea... Cura de alto nível... sem canto, sem preparação... como se fosse natural.”
Então olhou para Lysielle, ainda sentada, resmungando baixinho enquanto arrumava o cabelo desalinhado:
— “Será que... tudo isso foi calculado?”
Ela estalou a língua de leve, incerta.
“Talvez... ela esteja fingindo ser impulsiva. Um disfarce. Os Ravencourt eram assim, afinal.”
A postura da empregada mudou. A rigidez se manteve, mas agora havia um toque de respeito desconfiado.
Ela se curvou levemente, sem tirar os olhos da garota à sua frente:
— Senhorita Lysielle... por favor, me acompanhe. A Lady Elowen está à sua espera.
— Hã? — Lysielle olhou de lado, ainda meio atordoada. — Ah... tá. Claro...
Com isso, as duas caminharam em silêncio pelos corredores amplos e luxuosos da mansão Ravencourt.
Tapetes de fios dourados, candelabros de cristal mágico e espelhos altos decoravam o ambiente como uma exposição de poder congelada no tempo.
Lysielle, por sua vez, apenas seguia a empregada — sem perceber o leve passo mais lento, o cuidado cauteloso com que a criada agora se portava.
O silêncio entre elas era quase estranho. Até mesmo o som dos saltos ecoava de forma disciplinada demais.
Até que Lysielle, desconfortável, tentou puxar assunto:
— Então... qual o nome mesmo?
A empregada hesitou um milésimo de segundo, depois respondeu, mantendo a voz firme:
— Myra, senhorita.
— Hm... legal. Você é tipo... uma das empregadas pessoais de minha mãe?
— Sou a segunda assistente pessoal da Lady Elowen, senhorita. Responsável por servir apenas ela e... agora, por extensão, você.
— Ah... tá.
(Ué. Que formal. Ela não tava tão... respeitosa antes?)
Lysielle piscou, confusa, mas não teve tempo de pensar mais. A grande porta dupla da sala principal se aproximava.
Myra deteve-se diante da imponente porta do escritório. Após anunciar a chegada de Lysielle com uma voz firme e controlada, recuou com passos calculados. Em seguida, girou suavemente sobre os calcanhares, inclinou-se em uma reverência contida e disse com respeito:
— Por favor, entre. A Lady Elowen... aguarda ansiosamente sua chegada.
Bem longe dali o vento sussurrava sobre um campo suspenso no vazio, onde pétalas brilhantes flutuavam como pequenos sóis e lagos pairavam como espelhos celestes. Era o Reino dos Espíritos — um mundo sem tempo, onde as presenças mais antigas repousavam.
E naquele instante, o silêncio foi interrompido.
De entre as brumas azuladas, passos graciosos se fizeram ouvir. Uma raposa azulada de nove caudas surgiu com a leveza do vento noturno. Seus pelos reluziam em tons safira sob o céu de auroras eternas.
Ela parou, se curvou profundamente e declarou com voz doce e grave:
— Eu, Yari, a Raposa Azul, Rainha de Todas as Raposas, soberana do Clã das raposas, me curvo diante do mestre.
Em seguida, trovões suaves ecoaram ao longe, como galopes de prata. Das nuvens surgiu um qilin majestoso, seu corpo reluzindo como aço líquido. Ele desceu como névoa sólida e pousou com respeito.
— Eu, Hanzhou, Quilin de Prata, Guardião do reino perdido e antigo patriarca do Vale Celeste, ofereço minha reverência ao mestre.
O ar ficou mais denso, aquecido. Uma espiral flamejante desceu dos céus, e de suas cinzas surgiu um pássaro de asas largas e olhar ancestral. Suas penas brilhavam com brasas eternas.
— Eu, Ravelyss, Pássaro Vermelho das Cinzas Eternas, herdeira do Fogo Primordial, dobro minhas asas diante do mestre.
As águas abaixo estremeceram. Um redemoinho se ergueu do abismo e dele emergiu uma criatura colossal envolta em brumas. Sua presença preenchia o mundo espiritual.
— Eu, Vortex, Leviatã Brumoso, senhor dos mares adormecidos e vigia do abismo, abaixo minha cabeça ao mestre.
Flores começaram a brotar do próprio ar, abrindo-se para revelar uma figura esguia de olhos floridos. A brisa carregava o perfume de lótus antigos.
— Eu, Lyllianne, Espírito da Flor de Lótus Eterna, filha da Estação Perdida, me inclino com humildade diante do mestre.
Por fim, passos ressoaram com ecos sutis. Um cervo imaculado caminhou com lentidão… até que ele se curvou em sinal de respeito.
— Eu, En’Vahar, o Cervo ancião, o guardião do destino e vidente dos futuros selados, presto minha devoção ao mestre.
O mundo espiritual mergulhou em absoluto silêncio.
Seis entidades divinas, cujos nomes eram sussurrados entre os anciãos como lendas, estavam curvadas… todas diante de alguém.
Na beira do penhasco, com as pernas balançando preguiçosamente sobre o imenso vazio, uma pequena figura permaneceu sentada.
Mais por um instante... Todo o Reino dos espíritos sussurrou as mesmas palavras com reverência.
— “Mestre...Auri"...
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