Chapter 5:

Conhecendo uma jovem Lady.

Entre Luzes e Máscaras Quebradas


O escritório de Lady Elowen Ravencourt era uma fortaleza de ordem e silêncio.
Estantes alinhadas com grimórios antigos se erguiam como sentinelas. As janelas altas filtravam a luz em lâminas douradas, e a mesa de ébano ao centro, imaculada, sustentava documentos organizados com precisão absoluta.
Lysielle parou à frente da mesa de Lady Elowen.
Ela não conseguia se acostumar com aquilo. A presença de sua mãe era sufocante — e ela sequer havia dito uma palavra. Tudo nela exalava poder, desde os longos cabelos brancos como neve pura até os olhos dourados, vibrantes, que pareciam ver através da alma.
Elowen sequer ergueu a cabeça ao notar sua presença. Apenas falou:
— Fez um alvoroço na arena — disse ela, sem desviar o tom. — Caine e Vellatrice ainda respiram, espero?
— Infelizmente. — respondeu Lysielle, com um fio de ironia contida.
A mãe assentiu levemente, sem emoção. Continuou a escrever, a pena movendo-se com a fluidez de alguém que há muito substituiu sentimentos por decisões.
Então, sem aviso:
— A Academia Imperial confirmou sua admissão. Partirá ao amanhecer.
Por um instante, algo dentro de Lysielle estalou.Seu estômago se contraiu como se engolisse pedras.A Academia Imperial.
Ela sabia o que significava ser enviada para lá.Todo filho de nobre sabia.
Não era um lugar de glória. Era um campo de execução silencioso.Ali, o talento era colocado à prova não para florescer… mas para sobreviver.E quase nenhum voltava. E os que voltavam… não voltavam os mesmos.
Ela em seu íntimo quis perguntar "por quê?".Mais não poderia desobedecer sua mãe e apenas endireitou os ombros.
— ...Entendo. — disse, enfim.Sua voz saiu firme. Apenas firme. O resto, ela enterrou no peito.
Elowen parou de escrever. Pela primeira vez, levantou os olhos que pareciam bem cansados.
— Esperava mais resistência. — disse, como quem observa uma moeda rara com interesse.
— Eu… só quero cumprir o que a senhora espera de mim. — respondeu Lysielle, com sinceridade contida. Ela não podia negar o medo que sentia. Mas não queria decepcioná-la.
A mãe a estudou em silêncio. Algo em seu olhar pareceu hesitar, como se quisesse dizer mais — ou como se visse um reflexo antigo no rosto da filha.
Mas Elowen era Ravencourt até os ossos. E Ravencourts não vacilam.
— Que assim seja, então.
Lysielle curvou levemente a cabeça. Não como quem obedece — mas como quem respeita.E, com os passos firmes que aprendeu a cultivar desde cedo, virou-se e saiu.
A porta se fechou atrás dela, o silêncio retornou ao cômodo. E pela primeira vez naquela manhã, os lábios da Lady se curvaram sutilmente em um sorriso satisfeito. 
Elowen permaneceu imóvel por um tempo. Depois, como se falasse para si — ou talvez para uma lembrança distante — sussurrou apoiando o queixo na mão:
— Boa sorte, minha filha...
Após um tempo, a porta da sala se abriu com suavidade.
— Lady Elowen?... — chamou Myra, curvando-se levemente antes de tomar seu lugar ao lado da mestra.
Elowen permaneceu em silêncio por um breve instante, os olhos ainda fixos sobre os papéis cuidadosamente organizados à sua frente. Então, com lentidão e firmeza, empurrou a cadeira para trás, ergueu-se e caminhou até a janela.
Lá, deteve-se.
A luz filtrava-se pelas cortinas pesadas, traçando contornos dourados ao redor de seus cabelos brancos como neve. Ela ergueu uma mão, pousando-a sobre o próprio peito com força contida, como se tentasse manter o coração no lugar.
— A Academia Imperial já nos fez enterrar dois Ravencourt... — disse, em voz baixa, mas firme. Palavras que sangravam por dentro.
Myra não hesitou.
— Senhor Kaelen... e senhorita Seraphine... — respondeu com o tom impecável de uma serva, olhos ainda voltados para frente, sua postura de empregada era perfeita.
Por um momento, o silêncio entre elas foi absoluto.
Então, Myra desviou brevemente o olhar, suavizando a voz:
— Lady... estamos apenas nós duas aqui.
A mão de Elowen tremeu. Seus ombros baixaram discretamente, como se a armadura invisível que usava todos os dias cedesse apenas por um instante.
E então... uma lágrima solitária desceu por seu rosto.
Sem palavras. Sem soluços. Apenas a dor silenciosa de uma mãe que ainda escuta os nomes dos filhos como feridas abertas.
Lysielle ainda caminhava pelos corredores da mansão. A luz do entardecer filtrava-se pelas janelas altas, tingindo os tapetes com tons alaranjados. Ela não pensava em nada, apenas caminhava, tentando digerir o que aconteceria ao amanhecer.
Foi então que um grito cortou o silêncio:
— Jovem senhorita!!
Lysielle se virou de imediato. Um vulto atravessou o corredor e, antes que ela pudesse reagir, um par de braços a envolveu num abraço apertado.
— Liora...? — murmurou, surpresa.
— Eu fiquei sabendo! Sobre a luta! Você... você enfrentou seus dois irmãos sozinha?! — Liora se afastou o suficiente para examiná-la da cabeça aos pés, ofegante, os olhos arregalados de preocupação. — Você está mesmo bem? Te machucaram? Você tá escondendo alguma ferida, não tá?
— Liora... eu estou bem — respondeu Lysielle, quase sorrindo diante da reação da amiga. — Só... um pouco cansada. Mais nada.
A criada bufou, cruzando os braços, mas ainda com os olhos marejados.
— Me avisa da próxima vez antes de quase morrer, tá?
Lysielle abriu a boca para retrucar, mas então... uma luz dourada brilhou diante delas.
Partículas cintilantes começaram a se reunir no ar, girando devagar como pó de estrela, até tomarem forma. E então, com um leve som agudo, quase como um tilintar encantado, Auri apareceu.
— ~pihh!
Liora ficou estática por dois segundos.
— ...Mas o que... é isso...? — murmurou, com os olhos arregalados como se visse uma joia viva.
Auri girou no ar, exibindo seu brilho suave e suas pequenas asinhas etéreas.
— ~pihh pihh! — exclamou de novo, dando uma voltinha.
Liora caiu de joelhos no mesmo instante.
— MEU DEUS DO CÉU. QUE COISA MAIS LINDAAAAAAAAA!!
Ela começou a acariciar Auri como se sua vida dependesse disso — as bochechas, as asinhas, até o topetinho mágico que o espírito exibia. Auri emitiu um som satisfeito, de leve ronronar cósmico, aconchegando-se nas mãos da criada.
Lysielle, por sua vez, estava sem palavras. O espírito acabara de surgir do nada, e... estava deixando que outra pessoa o tocasse com tanta liberdade? Não era para ele ser mais reservado?
— Ele... Parece estar se divertindo muito...— olhou pra Auri, surpresa e viu a expressão de satisfeito dele...— que folgado...— disse meio irritada enquanto auri Caminha no decote de Liora 
Lysielle franziu o cenho, impaciente, e esticou o braço para agarrar Auri.
— Tá bom, já chega seu folgado... — resmungou, pegando-o com uma das mãos como se fosse uma fruta que não devia estar ali.
Auri soltou um sonoro ~Pihh!, como se protestasse, e Liora arregalou os olhos, entrando em pânico.
— N-não, senhorita Lysielle!! — gritou, tentando convencer a amiga a deixar ela ficar mais um pouco com ele.
Antes que Lysielle pudesse dizer qualquer coisa, sentiu um peso súbito se prender à sua perna.
— Liora?! O que pensa que está fazendo?!
— Por favor, deixa eu cuidar dele só mais um pouquinho! — choramingou, com os olhos marejados. — Ele é tão pequenino... tão fofo... tão... tão... — ela não conseguiu nem terminar a frase de tanto que tremia de emoção.
— Ahh... mas o que é isso?! Eu tô cercada de loucos! — gritou Lysielle, tentando chacoalhar a perna de um lado pro outro, na esperança de desalojar a amiga desesperada.
— Eu juro que cuido direitinho! Só mais um pouco, por favor! — implorava Liora, agarrada como uma ventosa.
Foi então que Lysielle sentiu algo estranho.
Uma sensação úmida... morna... perigosamente suspeita.
Ela baixou o olhar devagar, como quem sabe que está prestes a testemunhar uma tragédia pessoal.
Liora estava com o rosto enterrado em sua perna, abraçada como uma criancinha em busca de consolo. Quando finalmente levantou a cabeça — olhos marejados, expressão chorosa e o rosto completamente lambuzado — a meia impecável de Lysielle carregava agora uma mancha reluzente, brilhando sob a luz do corredor.
Ela congelou.
Lysielle ainda estava no auge do surto quando olhou para a própria perna — e o que viu foi pura desgraça.
“Ahn...?”
Ela estava tão surpresa que nem tinha palavras pra isso, mais sua cabeça por sua vez, girava a mil por hora...
“N-não pode ser...”
— “AHHHHHH! MINHA PERNA TÁ SUJA DE RANHO!!”
O grito mental veio primeiro. Depois, o grito real.
— RANHO!! ISSO É RANHO DE VERDADE!!!
Em pânico absoluto, ela balançou a perna ainda mais desesperadamente.
Liora ainda estava agarrada, tentando pedir a Lysielle pra cuidar mais de Auri, mais suas palavras vieram bagunçadas e desconexas pelo choro.
— Só mais um minutinho... só mais um abraço apertado...!
— VOCÊ GRUDOU SUA ALMA NA MINHA PERNA??! EU TÔ SURPRESA DE ALGUÉM PODER SE PRENDER TÃO FORTE ALGUMA COISA!!
Lysielle se debatia como se tivesse sido atingida por uma maldição, sacudindo a perna com desespero.
— ME SOLTA! ALGUÉM ME AJUDA! TEM UMA LOUCA PRESA A MIM!!
Enquanto isso, Auri observava tudo calmamente das mãos da dona, até soltar mais um sonoro e debochado:
— ~Pihh!
Parecia uma risadinha. Uma bem safada.
Lysielle virou os olhos para ele com indignação:
— VOCÊ TAMBÉM, PEQUENO TRAIDOR?!
Em fim, ela perdeu a paciência ao ver Auri se contendo pra não rir da situação.
— VOCÊ!! ISSO É TUDO SUA CULPA, SEU GLOBLINZINHO!!
E sem pensar duas vezes, Lysielle arremessou o pequenino com força até o fim do horizonte. Auri rodopiou no ar e desapareceu, soltando um indignado e fofo:
— ~Pihhhhhhh?!
— PEQUENINOOOO!! — gritou Liora. — Mamãe tá indo!! AGUENTA FIRME, EU TE SALVO!!
Ela saiu correndo na mesma hora, tropeçando nos próprios pés e quase escorregando, os braços esticados para frente tentando pegar Auri onde quer que ele caísse.
Lysielle ficou sozinha no meio do corredor. Silêncio. Um pingo caiu da meia. Ela tremeu.
— EU TÔ CONTAMINADA!! EU TÔ SUJA PELA BIOLOGIA DE OUTRA PESSOA!!
E então correu como se a perna estivesse pegando fogo.
— “Banheiro... preciso de um balde... ou fogo sagrado...”
Enquanto isso, ao fundo, Liora ainda gritava:
— PEQUENINOOO!! VOLTA PRA MAMÃEEE!!
Enquanto isso, em algum lugar distante — onde as árvores bloqueavam até mesmo a luz da lua — o silêncio da floresta era quebrado por passos arrastados e vozes abafadas.
Uma garota de aparência miserável, com os pés descalços, vestida em trapos e o olhar vazio, era empurrada por dois homens. Suja, magra e amarrada pelos pulsos, ela cambaleava até alcançar um outro homem encostado numa carroça.
— Tá aqui — disse um dos bandidos. — Como combinado. Essa mercadoria está em bom estado, ela deve o agradar bastante.— Espero que continue assim, foi um prazer fazer acordo com vocês... — respondeu o comprador, jogando uma pequena sacola de moedas que o bandido pegou no ar sem problemas com um tilintar metálico de várias moedas. Em seguida, o homem puxou a garota pela corda, desaparecendo com ela entre as árvores.
Mais adiante, próximo a uma fogueira acesa e a um acampamento rudimentar montado entre galhos retorcidos e panos rasgados, um homem musculoso e de rosto marcado por cicatrizes se aproximava de outro — claramente o líder do grupo.
— Chefe — disse ele, ofegante, com um sorriso sujo. — Nossa próxima presa foi confirmada.— Hm? — O líder abriu um dos olhos, ainda de braços cruzados próximo à fogueira.— A primogênita dos Ravencourt. Aquela... que fracassou na cerimônia de invocação. Vai sair amanhã com uma escolta pequena.
O líder permaneceu em silêncio por alguns segundos. Então, com calma perturbadora, se abaixou e puxou um pequeno baú de madeira escura.Ao abri-lo, retirou de dentro uma coleira negra, feita de um metal opaco coberto por finas runas roxas e entalhes profundos que pareciam respirar uma energia sinistra. O item pulsava com um brilho fraco e constante.
Ele ergueu a coleira com uma das mãos, deixando que os outros bandidos a vissem sob a luz trêmula da fogueira.
— Esta belezinha... Realmente suprime qualquer fluxo mágico abaixo do nível seis — murmurou, com um sorriso lento e torto se formando no rosto. 
Então, sem dizer mais nada, pegou um balde de madeira cheio de água ao lado da fogueira, ergueu-o com uma mão e virou-o sobre as chamas. Um CHUFFF abafado marcou o fim do fogo. A escuridão tomou o acampamento em segundos.
Enquanto o vapor se dissipava, o líder encarou o vazio à frente, com olhos semicerrados e um sorriso que parecia saído de um pesadelo.
— Ravencourt... mal posso esperar.